22/08/11

trovoada de verão

Estes são os dias em que acordo pela metade. Assim que ganho consciência de mim ganho consciência de que me falta parte. Deve ser aquele bocado que conduz o dia a um propósito, que encadeia os dias numa razão. Não há propósito, não há razão. Deve ser aquele bocado que sente nas costas os olhos do público. Estes são os dias em que me parece que a minha vida é um filme sem audiência, um filme que ninguém vê. Ninguém me vê. Na verdade sou eu que não vejo ninguém. Estes são os dias de nevoeiro, em que não vejo ninguém. Se na minha frente fito apenas a neblina em branco espesso, não consigo também ver o que se passa aqui dentro. Não tenho os olhos revirados para dentro, não tenho os olhos focados para fora. Não tenho olhos? Estes são os dias em que parece que não tenho olhos, nem coração. Porque o coração está nos olhos. Sentei-me à chuva, esta tarde. A minha vontade era fundir-me com ela. Ser um trovão, um luminoso trovão. Quis ser a tempestade, quis chover em todo o lado, ser milhares de gotículas espalhadas por toda a cidade, ser milhares de pequenas explosões de luz, reflectir a luz e ser arco-íris. Estes são os dias em que quero desaparecer, fechar-me das palavras, não ter de as usar mais. Estes são os dias em que não me sinto aqui.

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