Se é certo que há muitas formas de morrer, então ela morreu de diversas formas, das quais ficou excluída a forma derradeira e última de morrer, aquela à qual nenhuma outra forma, nem de vida nem de morte, se pode seguir: a morte física e cerebral. E, vejamos bem, se a morte derradeira tem o mal de acabar com tudo – tema em torno do qual dissertam filósofos, poetas e padres, mas não eu – , também tem essa mesma vantagem. Já às outras mortes não se lhes pode atribuir a atenuante de que ao menos não há pior mal. Não. Se se morreu uma vez de dor não significa que não se possa morrer de seguida de medo, de fome ou de uma outra dor, ainda mais profunda e acutilante.
Foi então isso mesmo que aconteceu: ela morreu uma vez e outra e outra, por diversos motivos e de diversas maneiras. Foram-lhe tirando pedacinhos de vida, uns pequenos que se regeneravam facilmente para serem colhidos com crueldade momentos depois, outros grandes, que custavam a sarar e que iam sendo mutilados à medida que se reconstruíam. No fim restou pouco de vida. E, em seu lugar, nasceu dentro dela uma insaciável vontade de viver. Se, antes, nos seus olhos brilhava a tranquilidade do conhecimento e a sensatez da paciência, olhos esses que procuravas para te darem conforto, agora, ao olhares para eles, não verás mais uma inocente nostalgia mas sim um fulgor malicioso de sede de felicidade. Já não fala com tempo nem se perde a pensar nas pessoas, já não espera nada do mundo, sentada a cumprir os seus deveres em tardes chuvosas de Novembro, já não pede nada a ninguém nem dá nada a ninguém. Agora vê-la correndo de um lugar para outro, com medo de perder alguma coisa. Vê-la a rir alto e a falar alto, com um grande esforço para esconder alguma falha de sanidade. Não é a mesma pessoa. Quer dizer, é a mesma pessoa, mas esvaziada por dentro e preenchida de algo que não se pode dizer que seja ela. Ontem disse-me que era feliz - agora, sim, era feliz -, que se o mundo nos fode tanto, chega uma altura em que temos de deixar de nos pôr a jeito. E agora ela juntou-se ao mundo que vai fodendo os outros, e não tardarás a vê-la aí a matar outras mentes inocentes, porque um dia lhe mataram a sua inocência, muitas e muitas vezes.
Mas se é certo que podemos morrer muitas vezes e de muitas maneiras, o amor e arte não morrem nunca de vez, e é por aí que temos oportunidade de viver eternamente, para além de qualquer tipo de morte.
2 comentários:
deixa-me dizer-te, o teu blog é dos meus preferidos, porque escreves tão bem, e as fotografias são tão bonitas. e até o aspecto do blog. dá-me uma boa sensação, fico mais calma. muito bom (:
E, desta vez, calo-me e enterro a minha cara na almofada.
Enviar um comentário