29/06/09

Mil novecentos e oitenta e quatro

Bastou-te ver a tua imagem reflectida no espelho
Para que tudo mudasse, não foi?
Talvez sobrevalorizes demais esse reflexo,
Mas sim, és mesmo tu que te fitas com esses olhos cansados
E és mesmo tu que moves os maxilares,
Na tua cara ossuda e emagrecida
Pelo tempo que te privaram de comida.
Sim. És tu. E se és tu, corpo pequeno e frágil,
Diminuído pela doença,
Massacrado pela tortura,
A única esperança que nos resta,
Então devo dizer-te, meu amor,
Que estamos certamente condenados.
Mas isto sou só eu a falar e, por favor, não me ouças.
Ignora o que vês.
Sentes-te um herói?
Então sê um herói,
Mesmo que tenhas a aparência de um derrotado.


29 de Junho de 2009

26/06/09

Nós e os outros

.
Talvez não seja tão mau ser como os outros.

E ficamos a pensar nestas palavras,
Quando desejamos profundamente que nos digam
O mesmo que dizem às outras pessoas.
Porque nós também sentimos,
Embora tentemos escondê-lo,
E à noite, também sonhamos,
E quando sofremos, também choramos,
Embora tentemos escondê-lo.
Não, não somos assim tão diferentes.

E por mais voltas que demos,
Por mais tentativas frustradas que façamos
Para nos desviar do caminho,
Nós acabamos sempre por caminhar
Na mesma estrada que os outros.

E por mais que tentemos isolar-nos das melodias românticas,
De todas as frases sentimentais,
De todos os pensamentos influenciados pela emoção
E afastados da razão,
Nós acabamos sempre por sentir
Da mesma forma que os outros.

E é por isso que reflectimos
Naquilo que nos disseste um dia:
Talvez não seja tão importante ser diferente,
Talvez seja bom perdermo-nos no amontoado de pessoas
Que caminham ao nosso lado todos os dias.
Talvez não precisemos de falar mais alto,
Nem de maneira diferente.
Talvez nos possamos perder nos sentimentos
E por vezes, afastarmo-nos da razão.

Talvez.

Talvez não seja tão mau ser como os outros.

26 de Junho de 2009

21/06/09

Negação

Tudo é permanente.
Algumas coisas vamos esquecendo,
Embrulhando em rituais,
Enterrando no profundo,
Sobrepondo e camuflando,
Mas nada se perde realmente.
E um dia, inevitavelmente,
Tudo regressa nós
E os erros que fizemos por esquecer
Serão pagos a dobrar.

Não se pode reescrever o passado
Não se pode apagar o que está feito
Não se pode esquecer de verdade,
Mesmo o que fizemos por apagar.

20 de Junho de 2009

16/06/09

Inerte

Ao meu redor inúmeros corpos indistinguíveis movimentam-se,
Correm para todos os lados a velocidades estonteantes,
Vozes misturam-se e ressoam na minha cabeça
E apesar de estarem tão próximas,
De ocuparem todo o ar à minha volta,
Ouço-as como uma sinfonia distante e imperceptível.
Tudo à minha volta é movimento:
É a mudança em forma de sons, cores e velocidades,
São etapas a suceder-se, ciclos a fechar-se, erros a repetirem-se,
É a mesma felicidade a ser construída e a desmoronar no mesmo instante.
Tudo à minha volta é mudança,
Tudo se move como que arrastado por uma forte corrente.
Tudo cede.
Ninguém parece resistir.
Menos eu.
Eu permaneço no mesmo lugar
E pareço ser a única pessoa que vai ficando,
Como uma pedra demasiado pesada para ser arrastada.

Tu muda, tudo se move, menos eu.

16 de Junho de 2009

09/06/09

Nunca

Não me compres rosas
Não me observes ao longe
Não me escrevas poemas
Não me beijes nos teus sonhos
Não os verbalizes nunca
Não te cruzes comigo na rua
Não me afugentes da tua mente
Nunca te esqueças que me queres
E que sou eu quem não te quer a ti.

Junho

Há muito mais a dizer
Do que transpões em palavras.
Há muito mais no viver
Do que ansiar por ti.
E porque me ofereces o mundo
Se ele não te pertence?
Porque me ofereces o coração
Se não o poderás controlar?

Há muito mais num segundo
Que o som de um palpitar.
E as nossas almas corrompidas,
As nossas mentes encardidas
Serão sempre indignas de amar.

O céu tem muito mais
Que o simples brilhar das estrelas
E por certo não merecemos
Apenas vê-las a elas.
O mundo é muito mais
Que o som de gargalhadas,
Soframos pois no presente
A dor das falhas passadas
(pois se somos seres perfeitos
não podemos nunca errar).

Sim, há muito mais na vida
Do que viver para amar.

9 de Junho de 09

06/06/09

Remoer

Gostava de saber porque é que eu me sinto assim
(ainda).
Queria tanto saber porque é que o teu nome
Associado a outras palavras
Ainda me perturba.
Foste assim tão importante para mim,
Que passado tanto tempo
(e ao contrário do esperado)
Ainda não tenhas esvanecido?

Porque é que não morres dentro de mim?
Porque é que continuas a respirar,
Lá no fundo, bem no fundo,
Num sítio ontem só os sonhos chegam?

6 de Junho de 2009

02/06/09

Enganos de um sentimento

Como quando nós pegámos no mundo como se fosse só nosso e o escondemos de toda a gente. Ninguém o pôde ver mais. Ninguém o pôde viver. E depois rimo-nos de todos, como se partilhássemos algo que nunca ninguém antes viu. Quão iludidos estávamos! Nada é segredo, pois tudo já aconteceu antes. Não somos únicos: o que sentimos não é restrito. E por isso não posso nunca dizer que és particular. Pois não és. És nada mais do que um igual aos outros. E eu?


Eu sou uma como todas aquelas que pisaram o teu chão.

2 de Junho de 09

01/06/09

Provir

Pelo calor de tantos sóis, nós gritámos
E na sombra de tantas árvores, amámos.
Amámos como quem ama sonhos e paisagens,
Sonhámos como quem sonha palavras e imagens.
E por baixo de tantas chuvas,
Tão lentas e persistentes chuvas,
Fugimos e refugimos,
Fomos e retornámos.
E tantas luas espelharam o sol desde esse dia
E tantas nuvens o tentaram encobrir.
E ainda assim aqui estamos,
Erguidos de tantas cinzas,
Cada uma mais pesada, cada uma mais forte.
Ainda assim aqui estamos
Capazes de sorrir perante a tristeza
E triunfar na derrota.

Porque por cada sol que morre
Nasce um novo no céu.

1 de Junho de 2009