Centenas de pessoas de diferentes tamanhos, sexos e idades mas, estranhamente, formando uma massa humana uniforme, prosseguiram na sua marcha silenciosa. Os seus olhos vazios, como que hipnotizados, não se moviam, olhando apenas e invariavelmente para a frente. Ninguém dizia uma palavra e os passos, coordenados uns com os outros, eram o único som na avenida que ligava o Norte e o Sul da cidade. Mas eram tão constantes e ritmados que deixavam de ser barulho para se misturar com o próprio silêncio.
Ao longe, alguém tossiu. Os passos cessaram, mas todas as mentes continuaram submersas no silêncio, todos os olhares continuaram focados no vazio. Quando a tosse parou, a marcha retomou instintivamente, com naturalidade. Nada se alterara e o ritmo da passada recomeçou, exactamente igual, como se nunca tivesse sido interrompido.
“Quero a minha alma. Quero a minha alma de volta.”
Era apenas um rapaz. Um rapaz pequeno de corpo emagrecido, face ossuda e uns olhos grandes, uns olhos grandes e despertos que já não fitavam o vazio. Não eram ainda olhos humanos, mas havia neles mais vida que nos restantes olhos, que continuavam a fitar o nada.
Os passos cessaram, como sempre que se ouvia algum som diferentemente do passear constante e ritmado. Então o rapaz repetiu “Quero a minha alma de volta.”.
Par a par, os olhos foram despertando, seguindo-se uns aos outros: olhos que não eram humanos, mas que já não eram de fantasmas.
Duas filas atrás, uma mulher murmurou, a medo, “Quero a minha alma de volta”, seguida de um homem, fazendo um enorme esforço de concentração: “Sim. Quero a minha alma de volta.”
E, na multidão, foram irrompendo várias vozes, tremendo com a nova sensação de convicção, exigindo que lhes devolvessem as suas almas.
Então, centenas de pessoas de diferentes tamanhos, sexos e idades mas, estranhamente, formando uma massa humana uniforme, continuaram na sua marcha, agora gritando em uníssono,
“Quero a minha alma de volta.”
Julho de 2009